Sob o aspecto formal, o auto de infração é um instrumento de cunho meramente fiscalizatório, muito utilizado pela Administração Pública, com o objetivo de levar ao conhecimento do suposto infrator (sujeito passivo) situações ou fatos tido como ilícitos. É o documento pelo qual se inicia o processo administrativo destinado à apuração da existência ou não da infração.
Diante do interesse público, o poder de polícia que detém a Administração encontra limites e, tais limitações decorrem de previsões legais, devendo tais requisitos ser rigorosamente observados. Sobre este prisma, o administrativista Hely Lopes Meirelles nos ensina que: “Os limites do poder de polícia administrativa são demarcados pelo interesse social em conciliação com os direitos fundamentais do indivíduo assegurados na Constituição da República”.
Diante de toda esse aparato, seria muita pretensão de nossa parte querer excluir, de uma vez por toda, a presunção de legitimidade absoluta dos atos da Administração Pública. Por questões óbvias, não é possível apresentar conclusões definitivas sobre a questão ora tratada. O que, evidentemente se pretende, é tentar provocar meras reflexões sobre tão importante tema do Direito Administrativo.
Ao admitir-se a presunção de legitimidade do ato administrativo como absoluta, é desconsiderar o Estado Democrático de Direito, cujo um de seus principais fundamentos é a dignidade da pessoa humana, prerrogativa esta estabelecida no inciso III, do artigo 1º da Constituição Federal.
Na nossa modesta avaliação, a presunção de legitimidade absoluta do ato administrativo não encontra o devido amparo constitucional, surgindo tão-somente da fértil imaginação doutrinária, com a qual temos nossas divergências quanto a sua aplicabilidade em processos oriundos de infrações administrativas. Por esse motivo, entendemos que a presunção de legitimidade dos atos administrativos, diante do que dispõe a Constituição Federal, não é absoluta, pelo contrário, é relativa, porque admite, em sua plenitude, prova em contrário.
Inegavelmente, a Administração Pública deve atuar de forma eficiente, sempre na busca de sua principal finalidade de atender ao interesse público, pois é em prol do interesse público que as garantias constitucionais passaram a existir e, por isso mesmo, devem ser respeitadas, de tal forma que a presunção de legitimidade absoluta do ato administrativo deve ser afastada quando colidir com o ordenamento constitucional.
Importante frisar que, na remota hipótese de a presunção de legitimidade absoluta do ato administrativo encontrar o mínimo amparo legal, evidentemente que sua inconstitucionalidade estaria deverasmente configurada, por flagrante incompatibilidade com a garantia fundamental do artigo 5º, inciso LVII da CF, que diz respeito à presunção de inocência. Lembrando, que referido dispositivo constitucional é taxativo ao determinar que: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Em realidade, o que vem ocorrendo de forma sistematizada e recorrente, é uma mera duplicidade de entendimento quanto à presunção de legitimidade absoluta do ato administrativo, isso porque há situações diferentes, uma delas, por exemplo, surge da necessidade que tem a Administração Pública de atender o interesse público, com a efetivação de atos meramente administrativos, tais como, proceder o registro em cartório, emissão de certidões de nascimento etc., que, neste caso, tais atos são de fé-pública absolutamente incontestável, caso contrário, o cidadão teria de buscar esses direitos no judiciário.
Entendemos, portanto, que, nos autos de infração envolvendo infrações administrativas, não podem concentrar o poder absoluto da veracidade dos fatos, mesmo porque, as informações contidas nos autos de infração, além de informativas, são “iuris tatum”, isto é, admitem, a qualquer momento, provas em contrário, tudo isso em respeito ao direito que tem o suposto infrator de ser julgado diante do processo legal, da ampla defesa e do contraditório, pressupostos estes estampados no artigo 5º, incisos LIV e LV da Constituição Federal.
Para efeito de reflexão, é oportuno lembrar que no processo penal, a presunção de legitimidade dos atos administrativos se afigura de forma totalmente inversa, pois na dicção do art. 155 do CPP, “o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.”
De outra sorte, este mesmo diploma legal, no que diz respeito ao ônus da prova, é claríssimo ao estabelecer em seu artigo 156 que: “A prova da alegação incumbe a quem a fizer”. Portanto, no que se refere à demonstração da materialidade e da autoria no âmbito penal, esse ônus cabe exclusivamente ao órgão acusador.
No entando, o que se vem observando, continuadamente, na análise de processos administrativos oriundos de multa de trânsito ou ambiental, é que a pseuda presunção de veracidade e legitimidade absoluta, quando atribuída aos atos administrativos, vem invertendo totalmente o ônus da prova para o infrator, e pior, sem nenhum respaldo constitucional, só servindo de elemento prejudicial à sua defesa.
Com efeito, por questões de bom senso, há de se considerar que a relação jurídica entre Administração Pública e o administrado está diretamente submissa às regras impostas pelo princípio da legalidade. Por isso mesmo, há situações em que a Administração Pública dispõe de recursos materiais e tecnológicos que a possibilita comprovar a existência de situação fática que motivou a deflagração do auto de infração.
Nesse sentido, citamos, como exemplo, as infrações de trânsito por motivo de excesso de velocidade ou de desrespeito à sinalização eletrônica em cruzamentos, nas quais os equipamentos, devidamente aferidos pelo Instituto de Metrologia, fotografam o veículo, comprovando de forma inconteste a ilicitude praticada, permitindo ao ato administrativo total presunção de legitimidade e verdade absoluta, a não ser no caso de equipamentos adulterados ou carentes de manutenção, o que poderia possibilitar outra interpretação, diante das provas trazidas aos autos pelo recorrente.
É este o nosso modesto entendimento sobre tão complicada e interminável matéria de Direito Administrativo.
Edvaldo Belisário dos Santos
Advogado, colaborador da FAMATO, membro do Conselho Estadual do Meio Ambiente – CONSEMA e do Conselho Estadual de Trânsito – CETRAN/MT.